Aquela dose de amor
(Antonio
Francisco)
Um
certo dia eu estava
Ao
redor da minha aldeia
Atirando
nas rolinhas,
Caçando
rastros na areia,
Atrás
de me divertir
Brincando
com a vida alheia.
Eu
andava mais na sombra
Devido
ao sol muito quente,
Quando
vi uma juriti
Bebendo
numa vertente.
Atirei,
ela voou.
Mas
foi cair lá na frente.
Carreguei
a espingarda,
Saí
olhando pro chão,
Procurando
a juriti
Nos
troncos do algodão,
Quando
surgiu um velhinho
Com
um taco de pão na mão.
O
velho disse: - “Senhor,
Não
quero lhe ofender,
Mas
se está com tanta fome
E
não tem o que comer,
Mate
a fome com este pão,
Deixe
este pássaro viver.”
Eu
disse: - Muito obrigado,
Pode
guardar o seu pão...
Eu
gasto mais do que isso
Com
a minha munição.
Eu
mato só por prazer,
Eu
caço por diversão.
O
velho disse: -“É normal
Esse
orgulho do senhor
E
todo esse egoísmo
Que
tem no interior.
É
porque falta no peito
Aquela
dose de amor.
Se
eu tivesse botado
Ela
no seu coração,
Você
jamais mataria
Um
pardal sem precisão,
Nem
dava um tiro num pato
Apenas
por diversão.”
Eu
fiquei muito confuso
Com
as frases do ancião.
Aquelas
suas palavras
Tocaram
meu coração
Derrubando
meu orgulho
E
a vaidade no chão.
Me
vali da humildade
E
disse: - Perdão, senhor,
Desculpe
a minha arrogância,
Mas
lhe peço um favor,
Que
me conte essa história
Sobre
essa dose de amor.
O
velho disse: - “Pois não.
Vou
explicar ao senhor
Porque
mesmo sem querer
Sou
o maior causador
De
hoje em dia o ser humano
Ser
tão carente de amor.
Isso
tudo aconteceu
Há
muitos séculos atrás
Quando
meu Pai fez o mundo
Terra,
mares, vegetais.
Me
pediu pra lhe ajudar
No
último dos animais.
Pai
me disse: - ‘Filho, eu fiz
Da
formiga ao pelicano;
Botei
veneno na cobra,
Bico
grande no tucano,
Agora
estou terminando
Este
animal ser humano.
Mas
ficou meio sem graça
Este
animal predador...
O
couro não deu pra nada,
A
carne não tem sabor,
Na
cabeça tem juízo,
Mas,
no peito, pouco amor.
Por
isso que eu lhe chamei
Pra
você lhe consertar,
Botar
mais amor no peito,
Lhe
ensinar a amar
E
tirar dessa cabeça
O
desejo de matar’.
Depois
disse: - ‘Filho, vá
Amanhã
lá no quintal,
No
casa dos sentimentos,
Perto
do pote do mal...
Traga
a dose de amor
E
bote nesse animal’.
De
manhã eu fui buscar
Aquela
dose sozinho,
Mas
na volta me entreti
Brincando
com um passarinho
Perdi
a dose do amor
Numa
curva do caminho.
Quando
eu notei que perdi,
Voltei
correndo pra trás,
Procurei
em todo canto,
Mas
cadê eu achar mais.
Aí
eu fiz a loucura
Que
toda criança faz.
Voltei,
peguei outra dose
Igualzinha
a do amor,
O
vidro da mesma altura,
O
rótulo da mesma cor...
Cheguei
em casa e botei
No
peito do predador.
Mas
logo no outro dia
Meu
pai sem querer deu fé
Do
animal ser humano
Chutando
o sapo com o pé
E
no outro ele mangando
Dos
olhos do caboré.
Vendo
aquilo pai chorou,
Ficou
triste, passou mal,
Me
chamou e disse: - ‘Filho,
O
bicho não tá normal.
O
que foi que você fez
No
peito desse animal?’
Quando
eu contei a verdade
De
tudo aquilo que eu fiz
Pai
disse tremendo a voz:
-
‘Eu sei que você não quis,
Mas
você botou foi ódio
No
peito desse infeliz.
Esse
bicho inteligente
Com
esse ódio profundo,
Com
pouco amor nesse peito
Não
vai parar um segundo
Enquanto
não destruir
A
última célula do mundo.
Depois
daquelas palavras,
Chorei
como um santo chora.
Quando
foi à meia-noite
Eu
saí de porta afora
E
nunca mais eu pisei
Na
casa que meu pai mora.
Daquele
dia pra cá
É
esta a minha pisada,
Procurando
aquela dose
Em
todo canto da estrada,
Pois,
sem ela, o ser humano
Pra
meu pai não vale nada.
Sem
ela, vocês humanos
Não
sabem dar sem pedir,
Viver
sem hipocrisia,
Ficar
por trás sem trair
Nem
distante do poder
Nem
discursar sem mentir.
Sem
ela, vocês trucidam
E
batizam os crimes seus.
Na
era medieval
Queimaram
bruxas e ateus
E
perseguiram os hereges
Usando
o nome de Deus.
Sem
ela, foram pra África
E
fizeram a escravidão...
Com
os grilhões do preconceito
Escravizaram
o irmão
Com
a espada na cintura
E
uma bíblia na mão’.
O
velho disse: - “Perdoe
Ter
tomado o tempo seu.
Consertar
vocês, humanos,
É
um problema só meu.”
Aí
o velho sumiu
Do
jeito que apareceu.
E
eu fiquei ali em pé
Coçando
o queixo com a mão,
Pensando
se era verdade
As
frases do ancião
Ou
se era tudo fruto
Da
minha imaginação.
E
naquele mesmo instante
Vi
passando na estrada
A
juriti que eu chumbei
Com
uma asa quebrada,
Mas
não tive mais coragem
De
atirar na coitada.
Joguei
fora a espingarda,
Voltei
olhando pro chão
Procurando
aquela dose
Nos
troncos do algodão
Pra
guardá-la com carinho
Dentro
do meu coração.
Se
acaso algum de vocês
Tiver
a felicidade
De
encontrar aquela dose,
Eu
peço por caridade
Derrame
todo o sabor
Daquela
dose de amor
No
peito da humanidade.
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