Mote: Foi no cabo da foice e do machado / Que eu passei minha vida e não dei fé

Valdir Telez e Zé Cardoso

                        VT

NUNCA TIVE FAZENDA NEM DINHEIRO

ME CRIEI DANDO DURO A VIDA INTEIRA

BROQUEI MATO, QUEIMEI, TIREI MADEIRA

FUI ESCRAVO DA ROÇA O TEMPO INTEIRO

AMANSEI TOURO BRABO, FUI VAQUEIRO

PEGUEI PEIXE DE ANZOL E JERERÉ

MATEI GATO, PREÁ E PUNARÉ

PEGUEI PEIXE, TATU, PEBA E VIADO

FOI NO CABO DA FOICE E DO MACHADO

QUE EU PASSEI MINHA VIDA E NÃO DEI FÉ

                        ZC

FUI CRIADO ASSISTINDO NA FAZENDA

O BUEIRO DO ENGENHO FUMEGANDO

E UM CABRA SUADO CARREGANDO

OS BAGAÇOS DE CANA DA MOENDA

MUITAS VEZES NA HORA DA MERENDA

SEM PODER ME SENTAR COMIA EM PÉ

A FUMAÇA TOSTANDO A CHAMINÉ

E O CHEIRO DE MEL AÇUCARADO

FOI NO CABO DA FOICE E DO MACHADO

QUE EU PASSEI MINHA VIDA E NÃO DEI FÉ

                       

                        VT

ME CRIEI COM CANJICA E MELANCIA

FAVA VERDE, COALHADA, LEITE E QUEIJO

SE ACASO EU TIVESSE ALGUM DESEJO

DE COMER OUTRA COISA EU NÃO COMIA

COM DEZ ANOS DE IDADE EU NÃO SABIA

O SABOR DE UM PEDAÇO DE FILÉ

SÓ COMIA TATU, PEBA E GUINÉ

FEIJOADA, PAMONHA E MILHO ASSADO

FOI NO CABO DA FOICE E DO MACHADO

QUE EU PASSEI MINHA VIDA E NÃO DEI FÉ

                        ZC

MEU PASSADO NO CAMPO FOI GROSSEIRO

O QUE TIVE NO CINEMA DO SERTÃO

FOI OS CALOS DE SANGUE EM MINHA MÃO

DOCUMENTOS DE FILHO DE ROCEIRO

MEU AVÔ PASSEANDO NO TERREIRO

DANDO ORDENS DA FORMA DE UM PAJÉ

DESTAMPANDO UMA LATA DE RAPÉ

E TOMANDO PITADAS DE TORRADO

FOI NO CABO DA FOICE E DO MACHADO

QUE EU PASSEI MINHA VIDA E NÃO DEI FÉ

                        VT

FUI CABOCLO DISPOSTO DA MÃO GROSSA

TODO TIPO DE LUTA EU ENFRENTEI

BROQUEI MATAO DE FOICE, CULTIVEI

CORTEI VARA PRA CERCA E FIZ PALHOÇA

NA ROTINA DE CASA PARA A ROÇA

COM CHINELO DE COURO EM CADA PÉ

A ENXADA DE MARCA JACARÉ

E UM BOI MANSO NA CANGA DO ARADO

FOI NO CABO DA FOICE E DO MACHADO

QUE EU PASSEI MINHA VIDA E NÃO DEI FÉ

                        ZC

DOZE HORAS NO CAMPO ERA A ROTINA

AS SEIS HORAS DO CAMPO EU RETORNAVA

OITO HORAS DA NOITE EU ME DEITAVA

ACORDAVA ÀS TRÊS HORAS DA MATINA

QUANDO OS PÁSSAROS CANTAVAM NA CAMPINA

EU ESTAVA TOMANDO MEU CAFÉ

CINCO E MEIA SAÍA DO CHALÉ

E AS SEIS HORAS JÁ ESTAVA EM MEU ROÇADO

FOI NO CABO DA FOICE E DO MACHADO

QUE EU PASSEI MINHA VIDA E NÃO DEI FÉ.